Saudações, querid@s torcedores brasileiros que
acompanham o blog Diário Virtual de Leitura!
A postagem de hoje traz a carga de emoção vivida
nos últimos dias em nosso país. A emoção refere-se a derrota do time brasileiro
na partida da semifinal contra a Alemanha com um placar absurdamente
inexplicável, por isso não existirá texto melhor para traduzir o sentimento de
tod@s os brasileiros nesse momento do que a crônica que Drummond escreveu para o Jornal do Brasil logo
após a eliminação da seleção brasileira diante da Itália na Copa do Mundo da
Espanha, em 1982.
Nada mais atual e oportuno o lirismo de nosso maior
poeta para enaltecer a vida como a maior dádiva do ser humano, muito além de
uma derrota em semifinal de Copa do Mundo em nosso próprio país.
Vamos ao texto
e a reflexão em forma de pergunta feita no fim do texto.
Perder,
ganhar, viver
Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o
final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos
verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis
que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças
festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus
corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso
da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco,
enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o
último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos
do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque
escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela
mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-frio;
vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número
um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional,
depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da
situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a
campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade
diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo,
inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de
bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de
campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a
tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios,
removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas
almas...
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual
nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos
previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória
estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se
uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias
traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados
pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder
implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta
caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um
resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até
mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os
cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos
míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade
exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós
fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para
recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque
não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito
de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos
para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio
futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou.
Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma
experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas,
readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do
real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida.
Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão
a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria
de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e
reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e
dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o
gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o
Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas
o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá
fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar
a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
Carlos
Drummond de Andrade, Jornal do Brasil, 21 de junho de 1982