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O texto de hoje é de autoria de Roberto Mangabeira Unger, filósofo e destacado teórico social
Sua obra de filosofia, Teoria Social e Direito é citada por intelectuais do porte de Jurgen Habermas, Richard Rorty, Cui Zhiyuan e Perry Anderson. Segundo este último, Mangabeira Unger, "como Edward Said ou Salman Rushdie, faz parte daquela constelação de intelectuais do Terceiro Mundo, ativa e eminente no Primeiro Mundo, sem ser assimilada por ele, cujo número e influência estão destinados a crescer".Para Anderson, Unger é "uma mente filosófica do Terceiro Mundo que vira a mesa para se tornar um sintetizador e profeta do primeiro mundo". Atualmente ele escreve na coluna Opinião do jornal Folha de São Paulo, além de atuar na política brasileira desde a década de 70.
Leiamos o texto Uma vida humana e reflitamos a mensagem do texto deixando suas impressões de leitura em forma de comentário.
Cada um de nós nasce enquadrado.
Acordamos do nada e nos encontramos jogados dentro de uma classe, de uma raça,
de uma nação, de uma cultura, de uma época. Nunca mais conseguimos nos
desvencilhar completamente desse enquadramento. Ele nos faz o que somos.
Mas não tudo o que somos. O
indivíduo sente e sabe também ser mais do que essa situação ao mesmo tempo
definidora e acidental. Ela nos quer aprisionar num destino específico. Contra
este se rebela, em cada pessoa, o espírito, que se reconhece como infinito
acorrentado pelo finito. E tudo o que quer o espírito é encontrar uma moradia
no mundo que lhe faça justiça, respeitando-lhe a vocação para transgredir e
transcender. Por isso, as raízes de um ser humano deitam mais no futuro do que
no passado.
Entretanto o indivíduo cedo
precisa abandonar a ideia de ser tudo para que possa ser alguém. Escolhendo e
abrindo um caminho ou aceitando o caminho que lhe é imposto, ele se mutila.
Suprime muitas vidas possíveis para construir uma vida real. Essa mutilação é o
preço de qualquer engajamento fecundo. Para que ela não nos desumanize, temos
de continuar a senti-la: a dor no ponto da amputação e os movimentos-fantasmas
dos membros que cortamos fora. Precisamos imaginar a experiência das pessoas
que poderíamos ter sido.
Depois, já mutilados e lutando,
vemo-nos novamente presos dentro de uma posição que, por melhor que seja ainda
não faz jus àquele espírito dentro de cada pessoa que é o infinito preso no
finito. Rendendo-nos, por descrença e desesperança, a essa circunstância,
começamos a morrer. Uma múmia se vai formando em volta de cada um de nós. Para
continuar a viver até morrer de uma só vez, em vez de morrer muitas vezes e aos
poucos, temos de romper a múmia de dentro para fora. A única maneira de fazê-lo
é nos desproteger, provocando embates que nos devolvam à condição de incerteza
e abertura que abandonamos quando aceitamos nos mutilar.
É do hábito de imaginar como
outros sofrem a mesma trajetória que surge a compaixão. Aliada ao interesse
prático, ela nos permite cooperar no enfrentamento das condições que tornam o
mundo inóspito ao espírito. E é para torná-lo mais hospitaleiro ao espírito que
precisamos democratizar sociedades e reinventar instituições. Temos de
desrespeitar e reconstruir as estruturas para poder respeitar e divinizar as
pessoas.
Vivemos, porém, em tempo
biográfico, não em tempo histórico. Precisamos de soluções que nos atendam no
espaço das vidas que temos para viver. Qualquer construção institucional
precisa, para avançar, beber na seiva de frustrações e aspirações pessoais.
Uma doçura gratuita, calor
misterioso, já une o Brasil. Será que nasce da sabedoria a respeito das coisas
mais importantes? A maioria dos brasileiros parece saber, instintivamente, a
verdade sobre o drama do espírito - tudo que eu trabalhei tão penosa e
tardiamente para descobrir. Não conseguimos, porém, passar da intuição da
realidade existencial à imaginação das possibilidades coletivas. Ainda nos
faltam clareza sobre um rumo para o país e confiança em nossa capacidade para
desbravá-lo. Desiludidos da vida pública, temos de passar pela desilusão da
desilusão e nos fazermos profetas de nossa própria grandeza.
Roberto Mangabeira Unger escreve
às terças-feiras na coluna Opinião do jornal Folha de São Paulo.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1109200107.htm